O pescador acorda antes do sol e, com o corpo cansado e alma disposta, apanha  seu saco de pescaria e segue para o caminho do mar. Com passos firmes e despretensiosos, assiste ao céu anunciar a transição das estrelas para os primeiros raios da manhã. 
E então, uma aquarela surge em meio ao nevoeiro matinal: tons de lilás começam a escorrer no azul noturno e, de repente, rabiscos rosados vão cortando o horizonte. Um cenário cheio de imagens que só Caymmi sabe cantar. 
Depois de muito caminhar, ele chega em seu lugar sagrado. Ouve gaivotas e a dança da corrente marinha ba
                    ten
                          do nas pedras. 
Escuta grilos e vento derrubando folhas. 
Há cheiro de maresia se entrosando com algumas ervas daninhas. 
Há cantos de bem-🎼 te- vis e papa-🎼capins. 
Gaivotas desfilando sob o mar. 
Encantos de sereias ecoando na maré cheia. 
Um verdadeiro ensaio orquestral. 
Mas o que ouve o pescador além das vozes que o cerca? 
Atento, lança sua vara ao mar. 
Paciente, ele espera. 
Entre suspiros e arremessos, há pausas silenciosas daquelas que pertencem somente  aos que se dedicam a arte de saber esperar. 
Mas há também barulhos internos e alguns monólogos que, quem sabe, o mar compreenda.
O objetivo é o peixe ou a pescaria? 
De repente, ele vê um borbulho na superfície espelhada n’água, a vara começa a inclinar, o olhar está atento e as mãos ágeis estão prontas para o primeiro fisgar da manhã. 
O que agarrou o seu anzol?
O pescador posiciona o corpo e manobra a vara com rapidez. Algo parece ter fisgado a sua isca. Uma luta se inicia. Ele inclina o corpo para trás e o que quer que tenha agarrado o seu anzol, reluta. Quem sabe o maior de todos os peixes que ele tenha pescado. Talvez seja essa a maior vaidade do pescador: pescar  o maior ou ainda, o mais raro peixe do oceano. 
A luta sessa e, cuidadosamente, ele se aproxima da superfície. Lentamente, a maré se acalma e o pescador olha fixamente para o mar e se depara com algo grandioso:
A própria imagem refletida na superfície da água parada. 
O sal do mar é o mesmo que escorre em seu rosto, pescador? 
Qual bússola te guia quando perdes a noção de espaço? 
Para onde o seu olhar cansado caminha  quando os céus já não te explicam os mistérios do tempo? 
Em que porto você ancora a sua alma ao final de cada dia? 
Uma criatura cintilante de cauda gigantesca avermelhada e nadadeiras de cor púrpura, salta sob os olhos do pescador rasgando o mar entre os raios de sol. Então, a sua imagem espelhada se fragmenta entre a maré. Surpreso, ele começa a vislumbrar o show diante de seus olhos: 
Uma espécie rara saltando de dentro de sua alma. 
 
Na moringa, leva pra casa o resultado de sua pescaria: perguntas, recordações, sonhos, um tanto de dores, amores naufragados, a inalcançável busca do homem pelo menino e uma certeza: 
o gosto da vida não está nos resultados mas na preparação. 
(Junho, 2022)
Dedico ao meu amigo Matheus. O único pescador que conheço.