A fumaça do cigarro jogada pela boca trêmula e o rosto figurando choro entregam a atmosfera do momento. A noite está fria e o céu escuro entorpece o quase silêncio da madrugada. As mãos passam inúmeras vezes sobre a cabeça e o contínuo caminhar de um lado ao outro da sacada explicitam ainda mais a ruptura da paz costumeira na vida daquele casal.
Ele entra apontando o dedo no rosto dela. A voz alterada parece ensurdece-la. Ela o empurra, escarra mil e uma palavras e vira as costas. Estão discutindo sem controle. As falas não são interrompidas pela escuta de um deles um minuto sequer. São duas vozes que ecoam da sacada do trigésimo nono andar do ND, são duas vozes contaminadas pelas substâncias da
ira e do ego.
Nesse momento, as expressões faciais falam de tristeza e desgosto. Expelem ódio pelos poros, engolem lágrimas. Braços protestam conturbados e mãos poderiam mesmo estrangular.
Agora, parece que ela está indo para o quarto. Fazer as malas, talvez? Jogar todas as roupas dele pela janela? Pegar uma arma? Está desesperada, não sabe o que fazer. Ele permanece na sacada. Está sentado, olha para os lados e chacoalha as pernas freneticamente. Levanta e tira algo do bolso. Vai para o quarto. A cortina entre a sacada e quarto permite apenas uma visão parcial de ambos. Com um movimento brusco, atira um papel sobre os pés dela e seguem discutindo. Ela acende outro cigarro e volta para a sacada, debruça parte do corpo na mureta e fica alí deixando o sangue quente descer para o rosto e o vento frio passear pelas costas. Pouco provável que pule. A linguagem do corpo diz o contrário. Parece relaxado, pendente no ar. Talvez ela esteja retomando fôlego para quem sabe assim, acalmar.
De repente, a cortina se abre e ele reaparece. Desacelera o passo e fica alguns segundos ali parado, vendo aquela imagem. Uma figura debruçada no sereno do escuro, o contorno do corpo quase perdido numa neblina leitosa, completamente entregue a noite e a ira. Uma figura exalando cheiros e sentimentos.
Ele se aproxima e como por impulso, puxa a mulher pelo braço, encosta bem o corpo no dela e com olhos ainda molhados um beijo é arrancado. Um beijo motivado pela raiva ou talvez pela profusão dos sentimentos. Um beijo que diz que às vezes o oposto da fala não é o silêncio. Um beijo para contrariar a ideia cristalizada do divã: "é conversando que se entende."
Um beijo infinitamente faminto.
Agora, as cortinas estão fechadas e a noite já não está tão fria.
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