CANTIGA TRISTE
Por Rubem Alves
Eu compreendo a preocupação dos meus amigos. Houve mesmo uma amiga querida que, de tão preocupada, trouxe-me uma maravilhosa garrafa de Jack Daniels, elixir dos deuses dionisíacos, na certeza de que os poderes daquele líquido me trariam de volta uma alegria que parecia perdida. Pois é, era isso que eles estavam pensando, os meus amigos: que a alegria me havia abandonado.
[...] Se tivessem prestado atenção, teriam ficado um pouco mais sábios e compreendido que a alma vai bem não é quando tudo está bem:À saudação costumeira – "Então, tudo bem, tudo tranqüilo?" – eu respondo sempre: "Nem para Deus, todo-poderoso, as coisas estão bem tranqüilas". A alma vai bem é quando ela é capaz de dançar nas costas do Diabo.
Por oposição à amiga que me deu o Jack Daniels, soube por vias indiretas de uma pessoa que se decidiu a não mais me ler, alegando que eu era deprê. Fiquei muito ofendido, pois isso significa que sou uma garrafa de Sleinad Kcaj – bebida que você nunca viu em prateleira de importados, a não ser que você tenha visto o Jack Daniels refletido num espelho, pois é isto mesmo que este nome, que mais parece palavra croata, quer dizer. Jack Daniels de trás pra diante. Ou seja: se o primeiro é garrafa de alegria e leveza, o Sleinad Kcaj, eu mesmo, minhas crônicas, são garrafas de tristeza.
Contra-ataco com o verso da Adélia Prado, que tem a alma parecida com a minha: "Cantiga-triste, pode com ela é quem não perdeu a alegria". E querem mais? "Por prazer da tristeza eu vivo alegre". E querem mais? "Amor é a coisa mais alegre; amor é a coisa mais triste; amor é a coisa que eu mais quero".
Terror mesmo eu tenho é dos alegrinhos, animação das festas, onde todo mundo é obrigado a estar alegre. Ai, que canseira, que vexação para o espírito! Alegrinho gosta mesmo é de chopinho com queijinho, coisa muito boa, eu mesmo gosto, mas não como comida-espanta-beleza. Alegrinho nem gera nem pare beleza. Não agüenta o pôr-do-sol. Fica logo com olhos e alma perturbados. Aí desanda a fazer barulho, a produzir agito, diz que é alegria, happy hour, quando na verdade é só medo do silêncio.
Mas que droga de alma é esta que é tão gelatinosa que não suporta a visão do belo? Tem terapia para tratar os deprimidos. Pois eu vou inventar uma terapia para tratar os alegrinhos. E vai ser tempo lacaniano. A sessão só vai terminar quando eles chorarem. Vão escutar Beethoven e Mahler para deixar de ser gelatinosos e aprender a força que existe na tristeza. E terão de passar por Van Gogh e Monet para aprender as lições do tempo (quem tem medo da tristeza, no fundo, tem é medo do tempo). E pela Cecília Meireles e pelo Robert Frost, para se sentirem bem no outono e no entardecer.
Quem não consegue fazer amizade com a tristeza é candidato ao consultório dos psiquiatras e às dietas de antidepressivos e tranquilizantes. Quem faz as pazes com a tristeza aprende também a beleza, porque as duas sempre andam juntas. Certos estavam os judeus que, nos rituais da Páscoa, misturavam ervas amargas com a comida. Pois a vida é assim.
O Vinícius dizia que tinha vontade de chorar diante da beleza. A Adélia diz também que o que é belo enche os olhos d'água. Os Beatles têm aquela balada que diz "Because the sky is blue it makes me cry" ("Porque o céu é azul eu choro..."). Eu choro lendo poesia; choro ouvindo música, choro vendo pintura. e minha alma vai muito bem e nem quero ser diferente.
Já imaginaram este absurdo de eu parar de olhar para o céu azul, para o sol poente, para as obras de arte, para evitar o choro? Repito a Adélia: "Por prazer da tristeza eu vivo alegre". A beleza é o prazer da tristeza.
Você não entende por que a gente chora diante da beleza? A resposta é simples. Ao contemplar a beleza, a alma faz uma súplica de eternidade. Tudo o que a gente ama a gente deseja que permaneça para sempre. Mas tudo o que a gente ama existe sobre a marca do tempo. Tempos fugit. Tudo é efêmero. Efêmero é o pôr-do-sol, efêmera é a canção, efêmero é o abraço, efêmera é a casa construída para o resto da vida.
A gente chora diante da beleza porque a beleza é uma metáfora da própria vida. Por isso imaginamos os deuses... Pois, o que são os deuses se não os poderes que farão retornar as coisas amadas perdidas? Quando o coração diz: "Que a beleza seja eterna!" – nesse exato momento nasce um deus. Então, não se aflija. Minha alma vai bem. Ela pode com cantiga triste. Vou cantando uma canção antiga, esquecida, de Denoy de Oliveira e Ferreira Gullar: "Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena".
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